Um streamer carioca, filho de imigrantes portugueses e sem diploma universitário, virou a cara mais reconhecida do esporte ao vivo na internet no Brasil. Casimiro Miguel Vieira da Silva Ferreira, o Cazé, nasceu em 20 de outubro de 1993, no Rio, estudou Jornalismo, mas não concluiu o curso. O que poderia ser uma limitação virou combustível: ele montou uma forma de transmitir e comentar jogos do jeito que fala com os amigos — direta, engraçada e com bom humor ácido.
O primeiro palco foi o Esporte Interativo, onde apresentou o EI Games e aprendeu as rotinas de TV enquanto criava, no YouTube, o canal De Sola, feito de humor e futebol. Em janeiro de 2019, passou pelo SBT Sports Rio, comentando jogos ao lado de Pedro Certezas durante as férias dos titulares. Era o início de uma transição: do bastidor de canal esportivo para a linha de frente de um novo jeito de consumir esporte.
O ponto de virada veio em 2021, quando ele iniciou lives diárias na Twitch. A fórmula juntava futebol, reação a lances e notícias, e piada boa na hora certa. A expressão “meteu essa?” escapou da live, virou bordão e meme — e fez o público voltar todo dia. Até o fim daquele ano, Cazé estava entre os maiores streamers do país e era um dos canais mais assistidos na plataforma, puxando uma audiência jovem que já não se via fixada à TV aberta.
A guinada para o papel de concorrente real a emissoras tradicionais aconteceu em novembro de 2022, com a criação da CazéTV na esteira da Copa do Mundo do Catar. Ali, ele deixou de ser só o apresentador e virou também empresário, com uma marca própria para transmitir eventos e montar programas. O lançamento foi turbinado por jogos ao vivo e cobertura diária de bastidores, e gerou picos históricos de audiência no YouTube no Brasil.
A história por trás da marca costuma ser mal contada nas redes. Cazé não é o dono majoritário do canal que leva seu apelido. A CazéTV é uma parceria: ele é sócio minoritário e o rosto da operação; a maioria pertence à LiveMode, empresa criada por Edgar Diniz e Sérgio Lopes, dois ex-executivos do finado Esporte Interativo. Essa estrutura explica o salto rápido de escala: o carisma e a comunidade construídos por Cazé, somados ao maquinário de negociação, produção e distribuição montado pela LiveMode.
O catálogo de eventos foi engordando com ambição. Estão na lista a Copa do Mundo de 2022, o Mundial de Clubes de 2025, os Jogos Pan-Americanos de 2023, a Olimpíada de Paris em 2024 e a Copa do Mundo de 2026. Em território nacional, a CazéTV entrou em campeonatos como Paulistão, Copa do Nordeste, Brasileiro Feminino e partidas do Brasileirão, em acordos vinculados à conta da Liga Forte União administrada pela LiveMode. O efeito foi imediato: onde havia resistência ao digital, passou a haver público fiel, chat engajado e marcas interessadas.
O que explica esse alcance? Cazé fala com milhões como se falasse com um amigo. Ele narra, reage, dá risada, erra e corrige ao vivo. Tudo em linguagem simples, sem jargão técnico e sem cerimônia. Em vez do distanciamento clássico do estúdio, há proximidade de tela e a sensação de “assistir junto”. O chat virou arquibancada; os cortes, combustível de rede social; os bastidores, conteúdo por si só. O resultado mexeu nos hábitos de consumo — e no mercado publicitário, que seguiu o público.
Em dois anos e meio, a CazéTV acumulou transmissões com recordes nacionais na internet, consolidou grade própria e virou referência para quem quer ver grandes eventos fora da TV. Isso não derrubou a Globo — ainda é a maior força do esporte no país —, mas abriu uma avenida que não existia em 2018: grandes jogos ao vivo, de graça, em plataformas abertas, com linguagem de internet e patrocínios formatados para engajamento.
Nos bastidores, a LiveMode é a engrenagem que faz o projeto rodar. A empresa toca as frentes que exigem peso de negociação: compra e sublicenciamento de direitos, parcerias comerciais com marcas, proteção antipirataria, pacote tecnológico de produção e distribuição. É ela que alinha os contratos com federações e ligas, planeja as cotas de patrocínio, desenha as entregas de mídia e coordena a operação técnica com estúdios, narradores, comentaristas e equipes externas.
O modelo financeiro mistura três pilares: patrocínios de cota (as marcas que “carimbam” a transmissão), ativações e quadros de branded content (ações dentro dos programas, com linguagem de internet) e publicidade dinâmica nas plataformas. Como a distribuição acontece principalmente em ambientes abertos, a escala de audiência compensa o ticket unitário de anúncio. Para eventos gigantes, entram também pacotes especiais e acordos sob medida com entregas multitelas.
Na parte técnica, a operação combina produção de estúdio, captação remota e centros de controle que recebem sinais por redes dedicadas. Isso reduz custo de OB van em alguns cenários e permite montar narrativas com mais câmeras virtuais, grafismos e interação do chat. Há desafios: latência maior que a da TV, flutuação de banda do público e guerra permanente contra restreams piratas. Ainda assim, a experiência evoluiu rápido — e a audiência se acostumou a pequenas diferenças de atraso quando o retorno é um conteúdo mais próximo.
A parceria com ligas e federações cresceu porque entregou três coisas que o esporte brasileiro precisava: visibilidade para torneios fora do eixo, calendário regular com cara de produto digital e métricas completas de engajamento. Paulistão e Copa do Nordeste, por exemplo, ganharam uma segunda janela com linguagem própria, sem canibalizar outras mídias. No futebol feminino, a cobertura frequente ajudou a formar público além das decisões, com jogos, pré-jogos e bastidores.
Em eventos internacionais, a estratégia é clara: somar programa diário, bastidor e reação de rede social à transmissão principal, esticando o “ciclo de conversa” de cada competição. Na Copa e na Olimpíada, o que antes morria ao apito final virou conteúdo para a madrugada: cortes de lances, entrevistas, trechos das lives, reencontros com memes. Esse ecossistema prolonga a relevância e mantém a audiência na mesma casa por mais tempo.
Há um ponto sensível que volta e meia vira boato: vínculo com a Globo. A resposta é direta. A CazéTV opera de forma independente, negociada e gerida pela LiveMode, sem relação societária com a emissora. Em várias competições, os pacotes são fatiados por janelas e plataformas; isso faz com que coexistam transmissões em TV aberta, TV por assinatura, pay-per-view e streaming aberto. Competem quando brigam pelo mesmo pacote; coexistem quando os direitos são divididos por meios.
Do lado da audiência, a chave do sucesso foi adaptar formato e ritmo para a tela do celular. Partes curtas, linguagem simples, informação sem rodeio e humor no ponto. O pré-jogo não precisa de uma hora; pode ter 15 minutos ágeis, com perguntas do chat e gráfico na tela. O pós-jogo conversa com o meme da vez, não com uma pauta fechada horas antes. E quando o calendário dá folga, entram lives de reação a notícias do dia, que funcionam como termômetro da comunidade.
O canal cresceu sem renegarem a essência de streamer. Cazé continua sendo Cazé: comenta, reage, erra e acerta ao vivo. Só que agora há times de produção, chefia de conteúdo, roteiristas, editores e operações comerciais de grande porte. O tom segue próximo, mas o processo ficou mais profissional, com planejamento de grade, metas de entrega para patrocinadores e cuidado jurídico sobre uso de imagens. É o equilíbrio entre espontaneidade e padrão de broadcast.
O avanço também mexeu com as carreiras ao redor. Narradores, comentaristas e repórteres migraram ou passaram a transitar entre TV e streaming, num rodízio que seria impensável há cinco anos. Clubes e federações revisitaram contratos e modelos de venda, testando jogos em canal aberto digital enquanto mantêm pacotes premium em TV ou OTT. E marcas, antes concentradas em intervalos tradicionais, hoje pedem quadros próprios, filtros no shorts, cortes para outras redes e ações dentro do chat.
Nem tudo é festa. Há um jogo pesado fora de campo: direitos esportivos ficaram mais caros, o dólar flutua, a competição por atenção é brutal e plataformas mudam regras do dia para a noite. O desafio é manter margem em anos sem Copa ou Olimpíada, quando o calendário perde seus picos naturais. A saída passa por criar franquias originais, ampliar torneios recorrentes, fortalecer torneios femininos e regionais e diversificar receitas para além do modelo centrado em grandes eventos.
A régua de performance também mudou. Não basta medir “ponto” de TV: hoje se acompanha tempo médio de visualização, retenção por bloco, mensagens por minuto no chat, CTR das ativações, conversão em assinaturas de parceiros e crescimento de base ao longo da temporada. Essa leitura orienta desde o jeito de abrir a live até a ordem dos quadros, e explica por que o digital conseguiu desafiar o monopólio cultural da tela grande.
No curto prazo, os marcos no radar são claros. O Mundial de Clubes de 2025, inédito no formato, deve concentrar fortes verbas e atenção global. A experiência acumulada na Copa de 2022 e em Paris 2024 ajuda a calibrar equipe, captação e patrocínios. A Copa de 2026, com Estados Unidos, Canadá e México, promete janelas amigáveis para o digital e uma nova corrida por direitos e integrações comerciais. No Brasil, a disputa por estaduais, Copa do Nordeste e Brasileirão em novos arranjos de liga vai revelar quem aprendeu melhor a vender o produto em múltiplas telas.
Cazé virou símbolo de uma mudança geracional. Não porque inventou a roda — assistir jogo com amigos existe desde sempre —, mas porque levou essa mesa de bar para dentro de um estúdio com câmera, chat e patrocinador, e entregou um produto que fala a língua de quem está no celular. A parceria com a LiveMode deu lastro para negociar com gente grande, montar operação complexa e escalar sem perder o traço principal: a conversa direta, olho no olho digital.
Na prática, a CazéTV provou que o fluxo pode ser outro: direitos comprados com foco em distribuição aberta, linguagem de internet, comunidade como ativo e marcas entrando como parceiras de conteúdo, não só como compradoras de intervalo. A Globo continua enorme, e continuará. Mas agora tem um concorrente real no campo digital, que formatou um caminho para eventos que não cabiam na grade tradicional e passou a disputar, de igual para igual, a atenção de quem assiste pelo celular, com fone no ouvido e o chat aberto.
Para o torcedor, o efeito é bom: mais opções de onde e como ver o jogo, mais vozes, mais formatos e mais chance de encontrar uma cobertura que combine com o seu jeito. Para o mercado, é alerta: a briga por direitos e audiência não é mais só preço e cobertura; é linguagem, produto e capacidade de transformar transmissão em conversa. E nisso, por enquanto, a casa que leva o apelido do dono sabe jogar.